Carf anula autuação milionária motivada pela Operação Lava- Jato
Por: Marcela Villar
Fonte: Valor Econômico
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) anulou um auto de
infração de R$ 61 milhões, em valores atualizados, contra a Integra Offshore
- consórcio formado pela OSX Construção Naval S/A, do empresário Eike
Batista, e pela empreiteira Mendes Júnior Trading Engenharia S/A. As
companhias foram investigadas na Operação Lava-Jato por suposto
superfaturamento de contrato com a Petrobras e pagamento de propina a
agentes públicos.
O consórcio foi feito para a construção de módulos das plataformas P-67 e P-
70, na Bacia de Santos (SP), para a exploração de petróleo na camada do présal.
A investigação pela força-tarefa da Lava-Jato motivou a Receita Federal a
autuar a Integra no ano de 2020. O Fisco exigiu o pagamento de Imposto de
Renda Retido na Fonte (IRRF) referente a 2015.
Auditores fiscais alegaram que determinadas despesas com fornecedores não
seriam custo inerente à operação e, assim, não poderiam ser deduzidas do IR.
Argumentaram ainda que não havia causa para o pagamento do sobrepreço
praticado (em tese, repassado a políticos). Por isso, seria exigido 35% de IRRF,
além de multa de 150%.
Mas, para o Carf, faltou prova na acusação tributária. Os conselheiros
entenderam que a autuação se baseou unicamente em depoimentos de delações
premiadas e acusações feitas pelo Ministério Público Federal (MPF), o que não
seria suficiente para a condenação fiscal. A decisão foi unânime, tomada pela 1ª
Turma Ordinária da 3ª Câmara da 1ª Seção, em junho (processo nº
17227.720404/2020-13).
O entendimento do tribunal administrativo se baseou, principalmente, no fato
de que os acordos de colaboração premiada devem ser o meio de obtenção de
provas e não a prova em si. Segundo advogados, esse foi o primeiro acórdão
do Carf que anulou um auto de infração de uma empresa investigada pela Lava-
Jato com esse fundamento.
Em outros casos de empresas investigadas pela força-tarefa de Curitiba, as
autuações foram mantidas quando há outras provas, além dos depoimentos no
acordo de colaboração premiada. Foi assim em processo contra empresa do
marqueteiro João Santana.
Neste caso, foram usados documentos apreendidos na casa da secretária do
setor de “Operações Estruturadas da Odebrecht”, Maria Lúcia Guimarães
Tavares. A penalidade foi mantida pela Câmara Superior, a mais alta instância
do tribunal (processo nº 10580.723816/201731).
O relator do caso da Integra, o conselheiro Rafael Taranto Malheiros, manteve
a decisão da Delegacia de Julgamento (DRJ), primeira instância administrativa,
favorável à empresa. “O Fisco autua o contribuinte baseado em supostos
superfaturamento de preços (que não comprova ter se verificado) e pagamentos
que teriam sido feitos com causas ilícitas (mesmo não contrastando as provas
apresentadas) e, pior, qualifica a multa, face a ‘graves suspeitas’ (meras
presunções simples) que pairavam sobre as operações escrutinadas”, afirmou
Malheiros, no acórdão.
No processo, a fiscalização disse existir “grave suspeita” de superfaturamento
nas vendas de módulos para as plataformas. O sobrepreço foi confirmado pelo
ex-diretor de construção da OSX, Ivo Dworschak Filho, ao MPF. Ele afirmou
aos promotores que a Integra pagou preços superiores aos praticados no
mercado para fornecedores. O “normal” girava em torno de 2,5% a 3,5% do
contrato principal, mas foi pago algo entre 8% e 12%. O contrato total foi de
US$ 922 milhões.
Segundo perícia feita pela Receita, houve sobrepreço de US$ 175,2 milhões em
alguns módulos, quando foram exportados para montagem na China. A Integra
Offshore foi intimada a esclarecer a diferença em 2016 e apresentou
documentos complementares contestando a acusação, o que, para a DRJ e Carf,
foram suficientes.
Colaboração premiada não pode ser usada como prova em si”
— Bianca Rothschild
A decisão da DRJ, mantida pelo Carf, diz que a partir da análise dos contratos,
“jamais ocorreu aumento no valor da contratação nos percentuais mencionados
pelo depoente”. “Tais valores sequer foram conferidos pela fiscalização, sendo
tratados como verdade incontestável”, afirmou. “A autuação se fundamenta
exclusivamente em informações e juízos de valor do MPF”, diz.
Para ela, a fiscalização “arbitrou um percentual aleatório, desprovido de
qualquer fundamento fático ou técnico, para exigir o IRRF e glosas das
despesas” - cobrou 20%, sendo que foi informado 50% pelo ex-executivo da
OSX na delação. “Em verdade, essa redução do percentual do suposto
superfaturamento de 50% para 20%, com base num também suposto
conservadorismo, revela que a própria fiscalização não tem elementos para
confirmar o superfaturamento”, completou a DRJ, na decisão.
Para o tributarista Pedro Grillo, do Brigagão, Duque Estrada Advogados
(BDE), a diferença nos percentuais mostra que a própria fiscalização “não tinha
muita confiança no que estava alegando”. Na visão dele, a acusação fiscal é
frágil. “A própria DRJ, composta exclusivamente por auditores fiscais,
entendeu que a autuação seria nula”, afirma. “A fiscalização se lastreia somente
em depoimentos de delações e relatos do MPF em ações da esfera criminal, que
ainda eram processos cautelares”.
Segundo a advogada da Integra neste caso, Bianca Rothschild, sócia do
Martinelli Advogados e ex-conselheira do Carf, a empresa comprovou que não
houve sobrepreço. “A documentação estava toda correta e a fiscalização não
conseguiu provar o que estava sendo dito. Todas as alegações ficaram vazias”.
Foram entregues contratos, notas fiscais, descrição dos serviços prestados e
extratos dos pagamentos. “Foi praticamente uma quebra de sigilo bancário de
todas as empresas na época”.
Ela destaca que a Lei nº 12.850 prevê que o acordo de colaboração premiada é
“negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe
utilidade e interesse públicos”, ou seja, não pode ser usado como prova em si.
“A autoridade fiscal ancorou o lançamento nas conclusões do MPF assumindo
como se todo o conteúdo da delação fosse prova de infração tributária”, diz.
O tributarista Maurício Faro, sócio do BMA Advogados, diz que foi muito
comum na Lava-Jato a Receita autuar empresas com base em investigações do
MPF e da Polícia Federal. “A Receita trata tudo que está na ação criminal como
se fosse incontroverso”, disse. Mas, neste caso, não houve prova
complementar. “O diferencial aqui foi que a DRJ disse que o auto de infração
não pode se sustentar somente por delação premiada”, completa.
Para a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), a decisão “analisou o
auto de infração sob a perspectiva do dever da autoridade fiscal de promover a
fundamentação do lançamento tributário, se posicionando no sentido de que
não houve adequada motivação do ato administrativo”, disse, em nota ao Valor.
Não confirmou se recorrerá.
Quanto à ação penal, depois de 9 anos da investigação citada no acórdão do
Carf, que baseou a autuação fiscal anulada, ainda não houve desfecho ou
condenação (processo nº 5035133-59.2016.4.04.7000).